Eutanásia: o que está em causa?
Contributos para um diálogo sereno e
humanizador
1. As questões ligadas à legalização da
eutanásia e do suicídio assistido estão em discussão na Assembleia da República
e na sociedade. Como contributo para esse debate, que desejamos seja em diálogo
sereno e humanizador, surge esta Nota Pastoral do Conselho Permanente da
Conferência Episcopal Portuguesa sobre o que verdadeiramente está em causa [1].
2. Por eutanásia, deve entender-se «uma ação ou omissão que, por sua natureza e
nas intenções, provoca a morte com o objetivo de eliminar o sofrimento» [2].
A ela se pode equiparar o suicídio assistido, isto é, o ato pelo qual não se
causa diretamente a morte de outrem, mas se presta auxílio para que essa pessoa
ponha termo à sua própria vida.
Distinta da eutanásia é a decisão de
renunciar à chamada obstinação terapêutica [3], ou seja, «a certas intervenções médicas já inadequadas à situação real do
doente, porque não proporcionadas aos resultados que se poderiam esperar ou
ainda porque demasiado gravosas para ele e para a sua família» [4]. «A renúncia a meios extraordinários ou
desproporcionados não equivale ao suicídio ou à eutanásia; exprime, antes, a
aceitação da condição humana perante a morte» [5]. É, pois, bem diferente
matar e aceitar a morte. Quer a eutanásia, quer a obstinação terapêutica,
constituem uma ingerência humana antinatural nesse momento-limite que é a
morte: a primeira antecipa esse momento, a segunda prolonga-o de forma
artificialmente inútil e penosa.
3. De forma sintética, podemos dizer que
subjacente à legalização da eutanásia e do suicídio assistido está a pretensão
de redefinir tomadas de consciência éticas e jurídicas ancestrais relativas ao
respeito e à sacralidade da vida humana. Pretende-se que o mandamento de que
nunca é lícito matar uma pessoa humana inocente (“Não matarás”) seja substituído
por um outro, que só torna ilícito o ato de matar quando o visado quer viver.
Consequentemente, intenta-se que a norma segundo a qual a vida humana é sempre
merecedora de proteção, porque um bem em si mesma e porque dotada de dignidade
em qualquer circunstância, seja substituída por um outro critério, segundo o
qual a dignidade e valor da vida humana podem variar e podem perder-se. Ora, na
nossa conceção, isto é inaceitável.
4. Para os crentes, a vida não é um objeto
de que se possa dispor arbitrariamente, é um dom de Deus e uma missão a
cumprir. E é no mistério da morte e ressurreição de Jesus que os cristãos
encontram o sentido do sofrimento. Mas quando se discute a legislação de um
Estado laico importa encontrar na razão, na lei natural e na tradição de uma
sabedoria acumulada um fundamento para as opções a tomar. O valor intrínseco da
vida humana em todas as suas fases e em todas as situações está profundamente
enraizado na nossa cultura e tem, inegavelmente, a marca judaico-cristã. Mas
não é difícil encontrar na razão universal uma sólida base para esse princípio.
A Constituição Portuguesa reconhece-o ao afirmar categoricamente que «a vida humana é inviolável» (artigo
24º, nº 1).
5. A vida humana é o pressuposto de todos
os direitos e de todos os bens terrenos. É também o pressuposto da autonomia e
da dignidade. Por isso, não pode justificar-se a morte de uma pessoa com o
consentimento desta. O homicídio não deixa de ser homicídio por ser consentido
pela vítima. A inviolabilidade da vida humana não cessa com o consentimento do
seu titular.
O direito à vida é indisponível, como o são
outros direitos humanos fundamentais, expressão do valor objetivo da dignidade
da pessoa humana. Também não podem justificar-se, mesmo com o consentimento da
vítima, a escravatura, o trabalho em condições desumanas ou um atentado à
saúde, por exemplo.
6. Por outro lado, nunca é absolutamente
seguro que se respeita a vontade autêntica de uma pessoa que pede a eutanásia.
Nunca pode haver a garantia absoluta de que o pedido de eutanásia é
verdadeiramente livre, inequívoco e irreversível.
Muitas vezes, traduz um estado de espírito
momentâneo, que pode ser superado, ou é fruto de estados depressivos passíveis
de tratamento, ou será expressão de uma vontade de viver de outro modo (sem o
sofrimento, a solidão ou a falta de amor experimentados), ou um grito de
desespero de quem se sente abandonado e quer chamar a atenção dos outros. Mas
não será a manifestação de uma autêntica vontade de morrer. É, pois, uma
linguagem alternativa de quem pede socorro e proximidade afetiva. A dúvida há
de subsistir sempre, sendo que a decisão de suprimir uma vida é a mais
absolutamente irreversível de qualquer das decisões.
7. Em nome da autonomia, os que defendem a
legalização da eutanásia e do suicídio assistido não chegam, por ora, ao ponto
de pretender a legalização do homicídio a pedido e do auxílio ao suicídio em
quaisquer circunstâncias. Pretendem apenas reconhecer a licitude da supressão
da vida, quando consentida, em situações de sofrimento intolerável ou em fases
terminais. Desta forma, atentam contra o princípio de que a vida humana tem
sempre a mesma dignidade, em todas as suas fases e independentemente das
condições externas que a rodeiam. A dignidade da vida humana deixa de ser uma
qualidade intrínseca, passa a variar em grau e a depender de alguma dessas
condições externas. Haveria, pois, situações em que a vida já não merece
proteção (a proteção que merece na generalidade das situações), por perder
dignidade.
8. Invocam os partidários da legalização da
eutanásia e do suicídio assistido que, com essa legalização, se respeita,
apenas, a vontade e as conceções sobre o sentido da vida e da morte, de quem
solicita tais pedidos, sem tomar partido. Mas não é assim. O Estado e a ordem
jurídica, ao autorizarem tal prática, estão a tomar partido, estão a confirmar
que a vida permeada pelo sofrimento, ou em situações de total dependência dos
outros, deixa de ter sentido e perde dignidade, pois só nessas situações seria
lícito suprimi-la.
Quando um doente pede para morrer porque
acha que a sua vida não tem sentido ou perdeu dignidade, ou porque lhe parece
que é um peso para os outros, a resposta que os serviços de saúde, a sociedade
e o Estado devem dar a esse pedido não é: «Sim, a tua vida não tem sentido, a
tua vida perdeu dignidade, és um peso para os outros». Mas a resposta deve ser
outra: «Não, a tua vida não perdeu sentido, não perdeu dignidade, tem valor até
ao fim, tu não és peso para os outros, continuas a ter valor incomensurável
para todos nós». Esta é a resposta de quem coloca todas as suas energias ao
serviço dos doentes mais vulneráveis e sofredores e, por isso, mais carecidos
de amor e cuidado; a primeira é a atitude simplista e anti-humana de quem não
pretende implicar-se na questão do sentido da verdadeira «qualidade de vida» do
próximo e embarca na solução fácil da eutanásia ou do suicídio assistido.
9. Não se elimina o sofrimento com a morte:
com a morte elimina-se a vida da pessoa que sofre. O sofrimento pode ser
eliminado ou debelado com os cuidados paliativos, não com a morte. E hoje, as
técnicas analgésicas conseguem preservar de um sofrimento físico intolerável.
Desta forma, pode afirmar-se que a eutanásia é uma forma fácil e ilusória de
encarar o sofrimento, o qual só se enfrenta verdadeiramente através da medicina
paliativa e do amor concreto para com quem sofre.
Como afirma Bento XVI, «a grandeza da humanidade determina-se essencialmente na
relação com o sofrimento e com quem sofre» [6].
Para além do círculo afetivo dos seus familiares e amigos, a dignidade de quem
sofre reclama o cuidado médico proporcionado, mesmo que os atos terapêuticos e
os analgésicos possam, pelo efeito secundário inerente a muitos deles,
contribuir para algum encurtamento da vida. Neste caso, não se trata de eutanásia,
pois o objetivo não é dar a morte, mas preservar a dignidade humana e a
«santidade de vida», minimizando o sofrimento e criando as condições para a
«qualidade de vida» possível.
10. A mensagem que, através da legalização
da eutanásia e do suicídio assistido, assim se veicula tem graves implicações
sociais, que vão para além de cada situação individual. Esta mensagem não pode
deixar de ter efeitos no modo como toda a sociedade passará a encarar a doença
e o sofrimento.
Há o sério risco de que a morte passe a ser
encarada como resposta a estas situações, já que a solução não passaria por um
esforço solidário de combate à doença e ao sofrimento, mas pela supressão da
vida da pessoa doente e sofredora, pretensamente diminuída na sua dignidade. E
é mais fácil e mais barato. Mas não é humano! Neste novo contexto cultural, o
amor e a solidariedade para com os doentes deixarão de ser tão encorajados,
como já têm alertado associações de pessoas que sofrem das doenças em questão e
que se sentem, obviamente, ofendidas quando veem que a morte é apresentada como
“solução” para os seus problemas. E também é natural que haja doentes, de modo
particular os mais pobres e débeis, que se sintam socialmente pressionados a
requerer a eutanásia, porque se sentem “a mais” ou “um peso”.
É este, sem dúvida, um perigo agravado num
contexto de envelhecimento da população e de restrições financeiras dos
serviços de saúde que implícita ou explicitamente se podem questionar: para quê
gastar tantos recursos com doentes terminais quando as suas vidas podem ser
encurtadas?
11. Não podemos ignorar que, entre nós, uma
grande parte dos doentes, especialmente os mais pobres e isolados, não tem
acesso aos cuidados paliativos, que são a verdadeira resposta ao seu
sofrimento.
A legalização da eutanásia e do suicídio assistido contribuirá para atenuar a
consciência social da importância e urgência de alterar esta situação, porque
poderá ser vista como uma alternativa mais fácil e económica.
12. Com esta Nota Pastoral, apelamos à
consciência dos nossos legisladores. Mas também sabemos que uma grande
percentagem dos nossos concidadãos afirma aprovar a legalização da eutanásia e
do suicídio assistido. Estamos convictos de que muitos o fazem sem a
consciência clara do que está verdadeiramente em causa. Daí a importância de um
vasto trabalho de esclarecimento para o qual queremos dar o nosso contributo.
No Ano Jubilar da Misericórdia, recordamos
que esta nos leva a ajudar a viver até ao fim. Não a matar ou a ajudar a
morrer.
Conselho Permanente da Conferência Episcopal
Portuguesa
Fátima, 8 de Março de 2016
[1] Sugerimos também a leitura da Nota
Pastoral da Conferência Episcopal Portuguesa, «Cuidar da Vida até à Morte».
Contributo para a reflexão ética sobre o morrer, publicada a 12 de novembro de
2009, in Documentos Pastorais, vol. VII, Lisboa 2002, 123-131.
[2] João Paulo II, Carta encíclica
Evangelium Vitae (25 de março de 1995), n. 65.
[3] Também designada por “encarniçamento
médico”.
[4] João Paulo II, Carta encíclica
Evangelium Vitae (25 de março de 1995), n. 65.
[5] Ibidem.
[6] Carta encíclica Spe Salvi (30 de
novembro de 2007), n. 38.
PERGUNTAS E RESPOSTAS SOBRE A EUTANÁSIA
ANEXO à Nota Pastoral do Conselho
Permanente da Conferência Episcopal Portuguesa, «Eutanásia: o que está em jogo?
Contributos para um diálogo sereno e humanizador»
1. O que são a eutanásia e o suicídio
assistido?Etimologicamente, o termo “eutanásia” deriva do grego: eu, “boa”, e thanatos, “morte”.
Por eutanásia, deve entender-se «uma ação
ou omissão que, por sua natureza e nas intenções, provoca a morte com o objetivo
de eliminar o sofrimento» [1].
A ela se pode equiparar o suicídio
assistido, quando não se causa diretamente a morte de outrem, mas se presta
auxílio ao suicídio de outrem, com o objetivo de eliminar o sofrimento. Também
se usa a expressão “suicídio medicamente assistido”, porque, de um modo geral,
as legislações em vigor em vários Estados exigem que seja um médico a prestar
esse auxílio, do mesmo modo que as leis que permitem a eutanásia exigem que
seja um médico a praticá-la.
2. Será a eutanásia verdadeiramente uma
“morte assistida”?
É usada, com frequência, a expressão “morte
assistida” como conceito que inclui a eutanásia e o suicídio assistido.
Mas trata-se de uma expressão enganadora e
que pode confundir.
A eutanásia e o suicídio assistido representam o encurtamento intencional de
uma vida. Não é possível para ninguém - saudável ou com uma doença incurável -
prever o momento da sua morte. A eutanásia reflete a pretensão de transformar a
morte num “acontecimento programado e calculado”.
Prestar assistência a uma pessoa doente até
ao termo natural da sua vida é uma expressão da solidariedade humana e da
caridade cristã; nesse sentido, poderia falar-se em “morte assistida”. Mas tal não
deve confundir-se com a eutanásia e o suicídio assistido. Nestas situações,
trata-se de provocar deliberadamente a morte de outra pessoa (de “matar”) ou de
prestar ajuda ao suicídio de outra pessoa (de ajudar a que outra pessoa “se
mate”). A eutanásia não acaba com o sofrimento, acaba com uma vida.
Em vez de “morte assistida”, faria mais
sentido falarmos em “vida assistida até ao seu termo natural”, garantindo ao
doente terminal, através dos cuidados paliativos no aproximar do fim da vida, a
assistência médica e humana necessária para o alívio do sofrimento. É,
portanto, legítimo reclamar a humanização do fim da vida através de um conjunto
de meios e atenções, oferecendo à pessoa os cuidados de que necessita e que
dignificam não apenas quem os recebe, mas também quem os pratica num ato de
verdadeira compaixão e generosidade.
3. O que é a obstinação terapêutica?
A obstinação terapêutica é também designada
como exacerbação terapêutica, encarniçamento terapêutico ou excesso
terapêutico.
Distinta da eutanásia é a decisão de renunciar à obstinação terapêutica, ou
seja, «a certas intervenções médicas já
inadequadas à situação real do doente, porque não proporcionadas aos resultados
que se poderiam esperar ou ainda porque demasiado gravosas para ele e para a
sua família» [2]. «A renúncia a meios
extraordinários ou desproporcionados não equivale ao suicídio ou à eutanásia;
exprime, antes, a aceitação da condição humana perante a morte» [3].
A obstinação terapêutica corresponde,
assim, à aplicação de todos os métodos, diagnósticos e terapêuticos conhecidos,
- mas que não visam proporcionar qualquer benefício ao doente -, com o objetivo
de prolongar de forma artificial e inútil a sua vida, impedindo, portanto,
através de uma atuação terapêutica desadequada e excessiva (desproporcionada),
que a natureza siga o seu curso. Esta abordagem não é desejável; é, aliás,
eticamente condenável, corresponde a má prática médica e conduz à chamada
distanásia.
Na escolha da intervenção adequada
(proporcionada), o médico deverá ponderar bem os meios, o grau de dificuldade e
de risco, o custo e as possibilidades de aplicação, em confronto com o
resultado que se pode esperar, atendendo ao estado do doente e às suas forças
físicas e morais [4].
Nem sempre é fácil estabelecer uma linha
clara entre a intervenção terapêutica adequada e a obstinação terapêutica. Cada
caso deve ser avaliado na sua especificidade, de acordo com os meios
disponíveis e com os avanços da medicina a cada momento. Seja como for, a
medicina deve intervir sempre que haja uma esperança fundada de salvar a vida,
devendo questionar-se medidas que não servem este propósito e se destinam
apenas a prolongar a vida do doente. No entanto, importa sublinhar que a
suspensão de algumas medidas terapêuticas que correspondam à obstinação
terapêutica não implica a suspensão de outras, destinadas, por exemplo, a
aliviar a dor do paciente.
É, pois, bem diferente matar e aceitar a
morte. Quer a eutanásia, quer a obstinação terapêutica, desrespeitam o momento
natural da morte: a primeira antecipa esse momento, a segunda prolonga-o de
forma artificialmente inútil e penosa.
4. O que é a distanásia?
Etimologicamente, significa o contrário de
eutanásia.
A distanásia consiste em utilizar todos os
meios possíveis - sem que exista uma esperança de cura - para prolongar de
forma artificial a vida de um doente moribundo. Está associada à obstinação
terapêutica. A distanásia é também considerada como a morte em más condições de
apoio clínico e humano (“má morte”), associada à dor, sofrimento e a outros sintomas
causadores de desconforto e incómodo significativo.
5. A eutanásia é sempre voluntária?
As legislações atualmente vigentes em
vários Estados exigem que a eutanásia corresponda a um pedido livre e reiterado
do doente, ao contrário do que se verificou no regime nacional-socialista
alemão. Mas as legislações holandesa e belga permitem a eutanásia de crianças
com o consentimento dos pais. Dão, assim, relevo à vontade de crianças numa
questão de relevância muito superior a outras, para as quais não é dado esse
realce. Deve questionar-se se estamos, nestes casos, perante uma eutanásia
voluntária.
Essas legislações também permitem a
eutanásia de pessoas dementes quando a vontade destas se manifestou antes do
evoluir da doença e quando ainda estavam em condições de o fazer em
consciência. Mas falta, nestes casos, no momento em que a eutanásia é
praticada, uma expressão de vontade atual; não sabemos, pois, se a pessoa em
causa não poderia ter mudado de opinião entretanto, como muitas vezes sucede
com o aproximar da morte.
Para além disso, e embora sem cobertura
legal, mas também sem que essa prática tenha dado origem a qualquer acusação ou
condenação judicial, na Holanda e na Bélgica, verifica-se a prática da
eutanásia em crianças recém-nascidas com deficiências graves e em adultos com
grave deficiência e incapazes de exprimir a sua vontade consciente. Não podemos
falar, nestes casos, em eutanásia voluntária [5].
6. A questão da legalização da eutanásia e
do suicídio assistido envolve opções religiosas?
Para os crentes, a vida não é um objeto de
que se possa dispor arbitrariamente, é um dom de Deus e uma missão a cumprir. E
é no mistério da morte e ressurreição de Jesus que os cristãos encontram o
sentido do sofrimento. Mas quando se discute a legislação de um Estado laico
importa encontrar na razão, na lei natural e na tradição de uma sabedoria
acumulada um fundamento para as opções a tomar. Esse fundamento reside no valor
da vida humana em todas as suas fases e em todas as situações. A Constituição
Portuguesa reconhece-o ao afirmar categoricamente que «a vida humana é inviolável» (artigo 24º, nº 1).
7. Quais são os principais argumentos dos
defensores da legalização da eutanásia e do suicídio assistido?
Por um lado, são invocados os direitos de
liberdade e autonomia individuais: cada um deverá poder dispor da sua vida. O
direito à vida será disponível e renunciável. Haverá um direito a morrer, e a
morrer com dignidade, como há um direito a viver.
Por outro lado, a eutanásia é apresentada
como um ato compassivo e de benevolência, que põe termo a um sofrimento inútil
e sem sentido. A vida deixa de merecer proteção quando é marcada pelo sofrimento
e perde, então, dignidade.
Podemos dizer que subjacente à legalização
da eutanásia e do suicídio assistido está a pretensão de redefinir mandamentos
relativos ao respeito e à sacralidade da vida humana. Pretende-se que o
mandamento de que nunca é lícito matar uma pessoa humana inocente («Não
matarás») seja substituído por um outro, que só torna ilícito o ato de matar
quando o visado quer viver. Consequentemente, intenta-se que a norma segundo o
qual a vida humana é sempre merecedora de proteção, porque um bem em si mesma e
porque dotada de dignidade em qualquer circunstância, seja substituída por um
outro critério, segundo o qual a dignidade e valor da vida humana podem variar
e podem perder-se. Ora, na nossa conceção, isto é inaceitável.
Argumenta-se, também, que a legalização da eutanásia e do suicídio assistido
seria uma exigência da liberdade de convicção e consciência e da liberdade
religiosa, assim como da neutralidade ideológica do Estado. Haveria que
respeitar a liberdade de quem considera que a sua vida não tem sentido, que o
seu sofrimento não tem sentido, mesmo que outros, em iguais circunstâncias,
considerem que a sua vida e o seu sofrimento têm sentido.
Invoca-se, ainda, a necessidade de regular
uma situação que já existe como prática clandestina, evitando abusos e
reduzindo os seus danos.
8. A legalização da eutanásia é uma
exigência do respeito pela autonomia da pessoa?
Não é lógico contrapor o valor da vida
humana ao valor da liberdade e da autonomia. É que a autonomia supõe a vida e
sua dignidade. A vida é um bem indisponível, o pressuposto de todos os outros
bens terrenos e de todos os direitos. Não pode invocar-se a autonomia contra a
vida, pois só é livre quem vive. Não se alcança a liberdade da pessoa com a
supressão da vida dessa pessoa. A eutanásia e o suicídio não representam um
exercício de liberdade, mas a supressão da própria raiz da liberdade.
9. Todos os direitos são disponíveis?
O direito à vida é indisponível. Não pode
justificar-se a morte de uma pessoa com o consentimento desta. O homicídio não
deixa de ser homicídio por ser consentido pela vítima. A inviolabilidade da
vida humana, consagrada no artigo 24º, nº 1, da Constituição Portuguesa, não
cessa com o consentimento do seu titular.
O direito à vida é indisponível, como o são
outros direitos humanos fundamentais, expressão do valor objetivo da dignidade
da pessoa humana. Também não podem justificar-se, mesmo com o consentimento da
vítima, a escravatura, o trabalho em condições desumanas ou um atentado à
saúde, por exemplo. É irrenunciável o direito à segurança social. Até em
questões de menor relevo, como na obrigatoriedade de uso de capacetes de
proteção ou cinto de segurança, no trânsito ou em determinados trabalhos, se
manifesta a indisponibilidade de alguns direitos.
10. Pode falar-se em “direito a morrer” e
em “direito a morrer com dignidade”?
É absurdo falar em “direito à morte”, como
seria absurdo falar em “direito à doença”, porque o direito tem sempre por
objeto um bem (à vida, à saúde, à liberdade) na perspetiva da realização humana
pessoal, e a morte não é nunca, em si mesma, um bem, pois todos os bens
terrenos pressupõem a vida, e nunca a morte. O “direito à morte” seria ainda
mais contraditório do que uma escravidão legitimada pelo consentimento da
vítima.
“Direito a morrer com dignidade” terá
sentido se com isso se pretende designar a morte em condições humanamente
dignas, com a proximidade e o amor dos entes queridos e com cuidados
paliativos, se necessários. Não certamente se com isso se designa alguma forma
de morte provocada, como o são a eutanásia e o suicídio assistido. Não se
compreende que uma morte seja digna por ser provocada, ou mais digna por ser
provocada.
11. Pode dizer-se que é autêntica a
manifestação de vontade de doentes terminais que pedem a eutanásia?
Pode dizer-se que nunca é absolutamente
seguro que se respeita a vontade autêntica de uma pessoa que pede a eutanásia.
Nunca pode haver a garantia absoluta de que o pedido de eutanásia é
verdadeiramente livre, inequívoco e irreversível.
Muitas vezes, traduz uma ideia momentânea,
frequentemente condicionada por um humor depressivo, e que, após o tratamento
psiquiátrico adequado, pode ser alterada. Em fases terminais sucedem-se
momentos de desespero alternando com outros de apego à vida. Porquê respeitar a
vontade expressa num momento, e não noutro? Não poderia a pessoa vir a
arrepender-se mais tarde, como se arrependem a maior parte dos que tentam o
suicídio? É que a decisão de suprimir uma vida é a mais absolutamente
irreversível de qualquer das decisões, dela nunca pode voltar-se atrás.
Que certeza pode haver de que o pedido de
morte é bem interpretado, não será ambivalente, talvez mais expressão de uma
vontade de viver de outro modo, sem o sofrimento, a solidão ou a falta de amor
experimentados, do que de morrer? Ou de que esse pedido não é mais do que um
grito de desespero de quem se sente abandonado e quer chamar a atenção dos
outros? Ou de que não é consequência de estados depressivos passíveis de
tratamento? Estando em jogo a vida ou a morte, a mínima dúvida a este respeito
seria suficiente para optar pela vida (in dubio pro vita). E poderá estar
alguma vez afastada essa mínima dúvida?
Num estudo realizado por Emanuel et al.
(2000) [6] com 988 doentes terminais, cerca de 10,6% destes doentes referiram
considerar pedir a eutanásia, ou o suicídio medicamente assistido, para si
próprios. No entanto, cerca de 6 meses mais tarde, cerca de 50,7 % desses
doentes mudaram de opinião, recusando a eutanásia. Além disso, os sintomas
depressivos estavam associados aos pedidos de eutanásia.
12. O valor da vida tem relevo apenas individual?
A vida não pode ser concebida como um
objeto de uso privado, como se estivesse de forma incondicional à disposição do
seu proprietário para a usar ou a deitar fora de acordo com o seu estado de
espírito ou determinada circunstância. Ninguém vive para si mesmo, como também
ninguém morre para si próprio. A vida tem uma referência social e transpessoal,
associada ao amor, à responsabilidade, à interdependência e ao bem comum.
E o valor da vida de cada pessoa para toda
a sociedade não desaparece quando essa pessoa deixa de ser útil, deixa de
produzir, perde quaisquer capacidades, ou pode vir a ser sentida como “peso”
pelos outros.
13. Faz sentido falar em vidas que perdem
dignidade, ou vidas “indignas de ser vividas”?
A vida humana é única, irrepetível e
encerra sempre um mistério. A dignidade de uma pessoa não se mede pela sua
popularidade, pela sua utilidade para a sociedade, nem diminui com o sofrimento
ou a proximidade da morte. Se a vida humana não vale por si mesma, qualquer um
pode sempre instrumentalizá-la em função de qualquer finalidade.
A dignidade da vida humana não depende de
circunstâncias externas e nunca se perde. Não é menor, nem se perde, por estar
marcada pela doença e pelo sofrimento.
14. Será o sofrimento físico e psíquico uma
justificação para a eutanásia ou o suicídio assistido?
Importa lembrar que com a eutanásia e o
suicídio assistido não se elimina, ou atenua, o sofrimento, elimina-se, sim, a
vida da pessoa que sofre. A eutanásia e o suicídio assistido são uma forma
fácil e ilusória de enfrentar o sofrimento, o qual só se enfrenta
verdadeiramente através dos cuidados paliativos e do amor concreto para com
quem sofre.
Há que combater, através dos cuidados paliativos, o sofrimento que pode ser
evitado. Tais cuidados permitem eliminar o sofrimento físico intolerável.
Mas a dor e o sofrimento, físico e
psíquico, fazem parte da natureza humana e acompanham o homem ao longo da sua
vida. A alegria do nascimento de um filho é antecedida pelo sofrimento do
parto. Na vida de qualquer pessoa, os momentos de alegria e bem-estar vão
alternando com períodos mais ou menos prolongados de tristeza e sofrimento. É
impossível julgar que se pode viver evitando a dor ou o sofrimento. E a morte
nunca pode ser resposta. Se o fosse, estaria aberta a porta à legalização do
homicídio a pedido e do auxílio ao suicídio em quaisquer circunstâncias, o que
não advogam os defensores da legalização da eutanásia e do suicídio assistido.
E deixariam de ter sentido as políticas públicas de prevenção do suicídio.
Há que evitar o sofrimento físico e
psíquico destrutivo e intolerável, neles intervir ativamente e ajudar a
encontrar um sentido para o sofrimento que não pode ser evitado, que faz parte
da vida, em qualquer das suas fases, com ou sem doença. Os cristãos encontram
esse sentido no sofrimento que Jesus Cristo experimentou até à morte na Cruz.
Crentes e não crentes podem ver no sofrimento um desafio que nos faz crescer em
humanidade (e não é humanamente benéfica a pretensão ilusória de fugir ao
sofrimento inevitável).
Dizia Viktor Frankl, um psiquiatra judeu
que sobreviveu aos tormentos de um campo de concentração nazi, e que
desenvolveu a logoterapia: «quando não
podemos mudar certas circunstâncias da vida, somos desafiados a mudar-nos a nós
próprios» [7].
Como afirma Bento XVI, «a grandeza da humanidade determina-se essencialmente na relação com o
sofrimento e com quem sofre» [8].
Para além do círculo afetivo dos seus familiares e amigos, a dignidade de quem
sofre reclama o cuidado médico proporcionado, mesmo que os atos terapêuticos e
os analgésicos possam, pelo efeito secundário inerente a muitos deles,
contribuir para algum encurtamento da vida. Neste caso, não se trata de
eutanásia, pois o objetivo não é dar a morte, mas preservar a dignidade humana
e a «santidade de vida», minimizando o sofrimento e criando as condições para a
«qualidade de vida» possível.
15. A legalização da eutanásia e do
suicídio assistido são uma exigência do respeito pela liberdade de convicção e
consciência e da liberdade religiosa, assim como da neutralidade ideológica do
Estado?
Para justificar a legalização da eutanásia
e do suicídio assistido, há quem alegue que dessa forma o Estado não toma
qualquer partido a respeito de conceções sobre o sentido da vida e da morte e
respeita, apenas, a vontade e as conceções sobre o sentido da vida e da morte
de quem solicita tais pedidos.
Não é assim. O Estado e a ordem jurídica,
ao autorizarem tal prática, dando-lhes o seu apoio, estão a tomar partido,
estão a confirmar que a vida permeada pelo sofrimento, ou em situações de total
dependência dos outros, deixa de ter sentido e perde dignidade, pois só nessas
situações seria lícito suprimi-la.
Quando um doente pede para morrer porque
acha que a sua vida não tem sentido ou perdeu dignidade, ou porque lhe parece
um peso para os outros, a resposta que os serviços de saúde, a sociedade e o
Estado devem dar a esse pedido não é: «Sim, a tua vida não tem sentido, a tua
vida perdeu dignidade, és um peso para os outros». Mas a resposta deve ser
outra: «Não, a tua vida não perdeu sentido, não perdeu dignidade, tem valor até
ao fim, tu não és peso para os outros, continuas a ter valor incomensurável
para todos nós». Esta é a resposta de quem coloca todas as suas energias ao
serviço dos doentes mais vulneráveis e sofredores e, por isso, mais carecidos
de cuidados e amor; a primeira é a atitude simplista e anti-humana de quem não
pretende implicar-se na questão do sentido da verdadeira «qualidade de vida» do
próximo e embarca na solução fácil da eutanásia ou do suicídio assistido.
16. Mas não será preferível regular uma
situação que já existe como prática clandestina, evitando abusos e reduzindo os
seus danos?
Este tipo de argumentação foi já utilizado
nas campanhas pela legalização do aborto. E há quem o invoque em favor da
legalização da venda e consumo de droga, por exemplo. Há que salientar, desde
logo, porém, que a eventual prática clandestina da eutanásia não tem comparação
com a prática do aborto clandestino ou com o consumo e tráfico de droga.
Este tipo de raciocínio levaria a desistir
de combater qualquer crime, pois se verifica sempre a sua prática clandestina.
E a experiência revela que, depois da
legalização da eutanásia, continua a prática desta também fora do quadro legal,
sendo que não há notícia de condenações judiciais por isso. A tendência será,
mesmo, para intensificar essa prática clandestina, devido a um clima de maior
permissividade perante qualquer tipo de eutanásia, seja ela legal ou não.
17. Pode considerar-se a legalização da
eutanásia um progresso civilizacional?
A legalização da eutanásia e do suicídio
assistido são habitualmente apresentadas junto da opinião pública como mais um
sinal de progressismo, numa linha de promoção da liberdade individual. Os opositores
surgem como antiquados.
Será importante recordar que a legalização
da eutanásia e do suicídio assistido não são um progresso civilizacional, mas
antes um retrocesso.
Em diversas sociedades primitivas, bem como
na Grécia e na Roma antigas, a eutanásia era praticada. Os idosos, os doentes
incuráveis e os “cansados de viver” podiam suicidar-se ou submeter-se a
práticas e ritos destinados a provocar uma “morte honrosa”. A morte de anciãos
foi praticada em algumas tribos de Akaran (Índia), do Sian inferior, entre os
cachibas e os tupis do Brasil. Na Europa entre os antigos wendi, povo eslavo, e
até no século XX na Rússia na seita pseudo-religiosa dos “estranguladores” [9].
A valorização e a defesa da vida humana em
todas as suas fases foram instituídas, em grande parte, pelo cristianismo. O
verdadeiro progresso da humanidade foi no sentido de criar leis e normas que
defendam a vida humana e impeçam o mais forte de exercer o seu poder sobre o
mais fraco (a abolição do infanticídio, da escravatura, da tortura, da
discriminação racial, etc.). Uma sociedade será tanto mais justa e fraterna
quanto melhor tratar e cuidar dos seus membros mais vulneráveis.
18. Quais serão as consequências sociais da
legalização da eutanásia?
A mensagem que, através da legalização da
eutanásia e do suicídio assistido, assim se veicula tem graves implicações
sociais, que vão para além de cada situação individual. Esta mensagem não pode
deixar de ter efeitos no modo como toda a sociedade passará a encarar a doença
e o sofrimento.
A quebra de um interdito fundamental (“não
matar”) que estrutura, como sólido alicerce, a vida comunitária, não pode
deixar de afetar a confiança no seio das famílias, entre gerações, e na
comunidade em geral.
Há o sério risco de que a morte passe a ser
encarada como resposta à doença e o sofrimento, já que a solução não passaria
por um esforço solidário de combate a essas situações, mas pela supressão da
vida da pessoa doente e sofredora, pretensamente diminuída na sua dignidade. E
é mais fácil e mais barato. Mas não é humano! Neste novo contexto cultural, o
amor e a solidariedade para com os doentes deixarão de ser tão encorajados,
como já têm alertado associações de pessoas que sofrem das doenças em questão e
que se sentem, obviamente, ofendidas quando vêm que a morte é apresentada como
“solução” para os seus problemas. E também é natural que haja doentes, de modo
particular os mais pobres e débeis, que se sintam socialmente pressionados a
requerer a eutanásia, porque se sentem “a mais” ou “um peso”.
É este, sem dúvida, um perigo agravado num
contexto de envelhecimento da população e de restrições financeiras dos
serviços de saúde que implícita ou explicitamente se podem questionar: para quê
gastar tantos recursos com doentes terminais quando as suas vidas pode ser
encurtadas?
Não podemos ignorar que entre nós uma
grande parte dos doentes, especialmente os mais pobres e isolados, não tem
acesso aos cuidados paliativos, que são a verdadeira resposta ao seu
sofrimento. A legalização da eutanásia e do suicídio assistido contribuirá para
atenuar a consciência social da importância e urgência de alterar esta
situação, porque poderá ser vista como uma alternativa mais fácil e económica.
19. Será possível restringir a legalização
da eutanásia e do suicídio assistido a situações raras e excecionais?
A experiência dos Estados que legalizaram a
eutanásia revela que não é possível restringir essa legalização a situações
raras e excecionais; o seu campo de aplicação passa gradualmente da doença
terminal à doença crónica e à deficiência, da doença física incurável à doença
psíquica dificilmente curável, da eutanásia consentida pela própria vítima à
eutanásia consentida por familiares de recém-nascidos, crianças e adultos com
deficiência ou em estado de inconsciência.
É conhecida a imagem da rampa deslizante
(slippery slope), muitas vezes evocada a este respeito. Depois de se iniciar
uma descida vertiginosa, não se consegue evitar a queda no abismo; quando se
introduz uma brecha num edifício, não se consegue evitar a sua derrocada.
Dois são os trajetos através dos quais se
vai alargando o alcance da legalização da eutanásia e do suicídio assistido.
Trata-se de um percurso lógico e, por isso, previsível.
Por um lado, quando se invoca a autonomia
para justificar essa legalização, é lógico que estas práticas não se limitem a situações
de doença em fase terminal. São, assim, mortas pessoas muito antes do final da
sua vida e algumas sem estar doentes.
Por outro lado, quando se reconhece que há
situações em que a vida “perde dignidade”, pela doença, sofrimento ou
dependência, e, por isso, nessas situações a vida não merece a proteção que
merece noutras, justificando-se a eutanásia e o suicídio assistido; então,
porque nessas situações a vida “perde dignidade”, deixa de ser “digna de ser
vivida”, pode prescindir-se de um pedido expresso no caso de pessoas incapazes
de o formular: recém-nascidos, crianças, pessoas com deficiência ou com
demência. E invoca-se o princípio da igualdade: porque haverão, então, de ficar
privadas do pretenso “benefício” da eutanásia estas pessoas?
20. Tem aumentado no número de casos de
eutanásia e suicídio assistido nos países em que estas práticas foram
legalizadas?
Sim. Um trabalho de revisão realizado por Steck et al. (2013) revela que o
número de mortes associadas à eutanásia e ao suicídio assistido aumentou nos
países em que tais práticas foram legalizadas, como é o caso da Bélgica,
Holanda, Suíça e o Estado de Oregon nos EUA [10].
Por exemplo, na Holanda, em 2015 a prevalência de mortes ocorridas através da
eutanásia e do suicídio assistido foi de 4829 casos, o que corresponde a 3,4 %
de todas as mortes [11]. Na Bélgica, em 2003 morreram através da eutanásia 235
pessoas. Em 2013 esse número aumentou para 1807, o que corresponde a um aumento
de cerca de 789% em 10 anos [12]. Os dados disponíveis mostram que os números
têm vindo sempre a aumentar, o que comprova que esta medida não se aplica
apenas em casos pontuais.
21. Quais serão as consequências da
legalização da eutanásia na medicina e na relação médico-doente?
A medicina assenta a sua prática no diagnóstico
e no tratamento das doenças, no acompanhamento e alívio do sofrimento dos
doentes, sempre com a finalidade de defesa da vida humana. A tradição refletida
no juramento de Hipócrates obriga a que os médicos estejam do lado da vida,
lutando contra a doença que nas suas formas mais graves conduzem à morte. A
eutanásia opõe-se à medicina e acaba por ser a sua negação.
A relação de confiança médico-doente, que é
a base da medicina, é, assim, destruída. É fácil perceber que aquele que
deveria fazer tudo para nos salvar, não pode subitamente, ainda que a nosso
pedido, agir no sentido de nos tirar a vida. A imagem do médico não pode passar
de uma referência amiga e confiável à de um executante de uma sentença de
morte.
Perante um médico que pratica a eutanásia,
o doente pode recear que este decida suspender os tratamentos mesmo quando
estes se justificam.
Além disso, a inclusão da eutanásia na
prática médica pode levar a que o clínico, em situações semelhantes àquelas em
que tenha sido praticada a eutanásia, tenda a repetir essa prática, ou a
propô-la aos seus doentes.
Do ponto de vista médico, a eutanásia é
executada através de um ato técnico (administração de drogas letais), mas não
pode ser considerado um ato clínico, já que não se destina a aliviar ou a curar
uma doença, mas sim a pôr termo à vida do paciente. Portanto, a eutanásia e o
suicídio assistido não são tratamentos médicos.
A Associação Médica Americana (American
Medical Association) tomou posição contra o envolvimento dos médicos na
eutanásia e no suicídio assistido, referindo claramente que esse envolvimento
contradiz o papel profissional do médico [13]. A Associação Médica Americana
acrescenta que a avaliação e o tratamento por um profissional de saúde, com
experiência nos aspetos psiquiátricos de doença terminal, pode, em muitos
casos, aliviar o sofrimento que leva um paciente a desejar suicídio assistido.
22. A eutanásia está a ser praticada em
doentes psiquiátricos? Que consequências daí podem advir?
Sim. Um estudo realizado na Holanda, entre
2011 e meados de 2014, revelou isso mesmo, sendo que a maioria dos casos de
eutanásia devido a doenças psiquiátricas (N=66) correspondiam a mulheres (cerca
de 70%), com várias doenças psiquiátricas crónicas, e socialmente isoladas.
Cerca de 25% dos casos tinham idades compreendidas entre 30 e os 50 anos. A
depressão e as perturbações de ansiedade foram as principais patologias
psiquiátricas apresentadas pelos doentes (56%). Além disso, em 24% dos casos,
os pareceres dos médicos psiquiatras não foram no sentido de justificar o
pedido de eutanásia. Porém, nestes casos, a comissão legalmente prevista decide
geralmente em favor da prática da eutanásia [14].
Na Suíça, num estudo realizado pelo
Instituto de Medicina Legal de Zurique sobre os suicídios assistidos praticados
por duas associações (Exit Deutsche Schweiz e Dignitas), entre 2001-2004,
(N=421) revelou que nenhuma destas pessoas sofria de qualquer doença letal e
que o “cansaço da vida” foi evocado em 25% dos suicídios (N= 105) [15]
assistidos. De acordo com os resultados publicados neste estudo, a percentagem
de suicídios assistidos cometidos em pessoas sem qualquer doença letal tem
vindo a aumentar desde 1992. Facilmente se percebe que entre estas poderão
estar pessoas que sofram de depressão e que se encontrem numa situação de
grande fragilidade emocional.
A eutanásia praticada em doentes
psiquiátricos é motivo de enorme preocupação na classe médica. Há o sério risco
de os psiquiatras desistirem de tratar alguns doentes com depressão, com o
efeito de desmoralização que isso poderá ter noutras pessoas com a mesma
doença, e de ser desincentivada a melhoria dos cuidados psiquiátricos [16].
23. Quais são os direitos do doente em
estado terminal?
Há um conjunto de direitos associados à
dignidade humana que devem ser respeitados durante o período em que se avizinha
o fim da vida. Neste caso, será preferível a expressão “fim de vida digno” em
vez de “morte digna”.
Os direitos do fim da vida incluem:
• o direito aos cuidados paliativos;
• o direito a que seja respeitada a sua
liberdade de consciência;
• o direito a ser informado com verdade
sobre a sua situação clínica;
• o direito a decidir sobre as intervenções terapêuticas a que se irá sujeitar
(consentimento terapêutico);
• o direito a não ser sujeito a obstinação
terapêutica (tratamentos inúteis e desproporcionados, também designados como
fúteis);
• o direito a estabelecer um diálogo
franco, esclarecedor e sincero com os médicos, familiares e amigos;
• o direito a receber assistência
espiritual e religiosa.
24. O que são os cuidados paliativos?
São cuidados de saúde prestados por uma
equipa multidisciplinar especializada, que incluem a chamada medicina
paliativa, que é hoje uma especialidade médica vocacionada para prestar
cuidados clínicos aos doentes avançados e incuráveis e/ou muito graves. De
acordo com a Organização Mundial de Saúde [17], os cuidados paliativos servem
para melhorar a qualidade de vida dos doentes e das famílias que se confrontam
com doenças ameaçadoras para a vida, mitigando a dor e outros sintomas e
proporcionando apoio espiritual e psicológico, desde o momento do diagnóstico
até ao final da vida.
Os cuidados paliativos não se destinam a
curar a doença, nem tão-pouco a acelerar ou atrasar a morte (aceitam a
inevitabilidade da morte), mas a assegurar um conjunto de medidas que visam
cuidar do doente, aliviando o seu sofrimento físico e psíquico, garantindo-lhe
conforto e a melhor qualidade de vida possível. Devem ser oferecidos muito
antes da proximidade da morte do paciente, caso contrário poderão não garantir
os objetivos de bem-estar que pretendem atingir. O apoio é dirigido quer ao
doente, quer à família, procurando-se que os doentes possam viver tão
ativamente quanto possível até à morte. Estes cuidados de saúde humanizados são
prestados habitualmente por uma equipa multidisciplinar, constituída por
médicos, enfermeiros, auxiliares, fisioterapeutas, psicólogos, podendo também
incluir voluntários.
Em doentes em fase terminal (últimos 3-6
meses de vida), é frequente existir dor física, sofrimento psíquico, bem como
outros sintomas. As intervenções dos cuidados paliativos destinam-se a aliviar
os sintomas que mais afetam o paciente. O sofrimento psíquico pode ser aliviado
através de psicofármacos, mas também através de psicoterapia de apoio, do
consolo moral e efetivo prestado pela equipa de cuidadores e também pela
família, garantindo, assim, que nenhum doente em fim de vida (últimos 12 meses
de vida) ou agónico (últimas horas ou dias) fica entregue a si próprio.
Estes cuidados devem ser prestados de forma
continuada até ao momento da morte; e mesmo após a morte, com a prestação de apoio
à família enlutada.
Os cuidados paliativos devem ser oferecidos
atempadamente – e não apenas quando o doente está moribundo – de uma forma que
respeite a sensibilidade deste e da sua família, e de acordo com as suas
características culturais e religiosas.
Esta é uma área da medicina relativamente
nova enquanto especialidade e necessita de ser alargada a mais zonas do país,
com a criação de mais equipas especializadas.
25. O que é sedação paliativa?
Trata-se da utilização monitorizada de
terapêutica destinada a induzir um estado de sedação, alterando, assim, o
estado de consciência do doente, tendo em vista aliviar a carga de sofrimento
causada por um ou mais sintomas que não cedem aos tratamentos habituais (ditos
refratários), de uma forma que é eticamente aceitável para o doente, família e
prestadores de cuidados de saúde. Utilizam-se fármacos sedativos (não morfina)
e podem ocorrer diferentes níveis de sedação.
A sedação paliativa pode ser recomendada nalgumas situações e configurar a boa
prática médica no âmbito dos cuidados paliativos [18]. Contudo, a sedação
paliativa não deve nunca servir para abreviar a vida do doente. Além disso, não
pode ser considerada um tratamento de primeira linha e deve ser praticada por
uma equipa devidamente preparada.
Assenta nos seguintes pontos:
1. Intenção
clara (sedar o doente com a intenção de aliviar o sofrimento);
2. Processo (com
o consentimento do doente e recurso a fármacos sedativos);
3. Resultado (o
êxito da sedação é o alivio do sofrimento e não a morte).
26. Quais são as principais necessidades
dos doentes em fim de vida?
As necessidades dos doentes em fim de vida e terminais assentam essencialmente
no alívio do sofrimento físico e psíquico, prestado por uma equipa devidamente
capacitada, no apoio espiritual e no suporte afetivo através da família e
amigos.
A dor física é muito frequente,
principalmente nas doenças neoplásicas. Uma correta terapêutica da dor torna-se
necessária e importante para garantir a melhor qualidade de vida. No entanto,
existem vários outros sintomas e todos merecem o devido tratamento.
O sofrimento psíquico não deve ser
menosprezado. Estes doentes apresentam com frequência perturbações depressivas
que obrigam a uma terapêutica antidepressiva e a um adequado apoio psicológico.
É importante que o doente sinta que não está sozinho, sinta que a sua vida tem
sentido e que tem o apoio de uma equipa a tratar dele, o que, juntamente com o
carinho da família e dos amigos, proporciona um precioso auxilio para
contrariar o sentimento de isolamento e insegurança que ocorre com frequência
nestes casos.
As necessidades espirituais (comuns a
crentes e não crentes) e religiosas devem ser justamente valorizadas. O apoio
que permite dar sentido ao sofrimento deve ser garantido a estes doentes.
Fátima, 8 de março de 2016
[1] João Paulo II, Carta encíclica
Evangelium Vitae (25 de março de 1995), n. 65.
[2] Ibidem.
[3] Ibidem.
[4] Congregação para a Doutrina da Fé,
Declaração sobre a eutanásia, n. 2, 1980.
[5] Cf. Bregje D Onwuteaka-Philipsen et
al., «Trends in end-of-life practices before and after the enactment of the
euthanasia law in the Netherlands from 1990 to 2010: a repeated cross-sectional
survey», www.thelancet.com, online July 11, 2012,
http://dx.doi.org/10.1016/S0140-6736(12)61034-41; Kenneth Chambaere er al.,
«Physician-assisted deaths under the euthanasia law in Belgium: a
population-based survey», CMAJ, 2010, DOI:10.1503/cmaj.091876; Gerbert van
Loenen, Do you call this a life?, Ross Latner, 2015.
[6] Emanuel EJ, Fairclough DL and Emanuel
LL, «Attitudes and desires related to euthanasia and physician-assisted suicide
among terminally ill patients and their caregivers», JAMA, 2000; 284:
2460–2468.
[7] In O Homem em busca de sentido.
[8] Carta encíclica Spe Salvi (30 de
novembro de 2007), n. 38.
[9] Cf. Elio Sgreccia, Manual de bioética:
Fundamentos e ética biomédica, Ed. Loyola, São Paulo, 1996. 601-605.
[10] Cf. Steck N, Egger M, Maessen M,
Reisch T, Zwahlen M, «Euthanasia and assisted suicide in selected European
countries and US states: systematic literature review». Med Care. 2013 Oct;
51(10): 938-44.
[11] Cf. Radbruch L, Leget C, Bahr P,
Müller-Busch C, Ellershaw J, de Conno F, Vanden Berghe P; board members of the
EAPC. Euthanasia and physician-assisted suicide: A white paper from the
European Association for Palliative Care. Palliat Med. 2016 Feb;30(2):104-16.
[12] Federale Controle- en
Evaluatiecommissie Euthanasie. Zesde Verslag aan de Wetgevende Kamers (2012–2013),
http://www.dekamer.be/flwb/pdf/54/0135/54K0135001.pdf (acedido em 22-02-2016).
[13] Cf.
https://www.ama-assn.org/ssl3/ecomm/PolicyFinderForm.pl?site=www.amaassn.org&uri=/resources/html/Policy
Finder/policyfiles/HnE/H-140.952.HTM (acedido em 19-02-2016).[14] Cf. Kim SY,
De Vries RG, Peteet JR, «Euthanasia and Assisted Suicide of Patients With
Psychiatric Disorders in the Netherlands 2011 to 2014.», in JAMA Psychiatry.
2016 Feb 10. doi: 10.1001/jamapsychiatry.2015.2887. [Epub ahead of print].
[15] Cf. Fischer S, Huber CA, Imhof L et
al., «Suicide assisted by two Swiss right-to-die organisations», in. J Med
Ethics 2008;34:810–14.
[16] Cf. Appelbaum PS. «Physician-Assisted
Death for Patients With Mental Disorders-Reasons for Concern». in JAMA Psychiatry.
2016 Feb 10. doi:10.1001/jamapsychiatry.2015.2890. [Epub ahead of print].
[17] Cf. http://www.who.int/cancer/palliative/es/
(acedido em 18-02-2016).
[18] Cf. Cherny NI and Radbruch L.,
«European Association for Palliative Care (EAPC) recommended framework for the
use of sedation in palliative care». Palliat Med 2009; 23: 581–593.
Sem comentários:
Enviar um comentário