domingo, 20 de janeiro de 2008

O MISTÉRIO DA TRANSFIGURAÇÃO [1]
No mistério da Transfiguração, a Igreja não celebra apenas a transfiguração de Cristo, mas também a sua própria.
São Paulo usa duas vezes o verbo transfigurar-se (em grego, transfigurar-se e transformar-se são termos equivalentes) com referência aos cristãos, e nas duas vezes indica algo que tem lugar aqui e agora: “transformai-vos pela renovação de vosso espírito” (Rm 12, 2).
O verbo, que é traduzido por “reflectir como em um espelho”, pode ter por si mesmo dois significados. O primeiro, adoptado pelos antigos, é “contemplar como em um espelho”; o segundo, preferido pelos modernos, é “reflectir como um espelho”. No primeiro caso, Cristo é o espelho no qual contemplamos a glória divina, no segundo, nós somos o espelho que, contemplando Cristo reflectimos a glória divina.
A interpretação antiga é às vezes criticada pelo fato de levar a pensar que, desse modo, Cristo seria equiparado ao restante do mundo criado, o qual é também definido como espelho (cf. 1 Cor 13,12), mas nada obriga a pensar que o Apóstolo use o termo no mesmo sentido nos dois textos. Também o homem é imagem de Deus, e no entanto isso não impede o Apóstolo de definir também Cristo como "Imagem de Deus", em um sentido diferente e mais forte. Ambas as nuances mantêm-se, portanto, unidas, como procede uma autorizada tradução moderna da Bíblia que sugere entender a expressão no sentido de que "nós contemplamos e reflectimos", isto é, "reflectimos o que contemplamos".
Segundo o Apóstolo, é preciso ir além. O homem não só reflecte o que contempla, mas transforma-se naquilo que contempla. Con­templando, somos transfigurados na imagem que contemplamos. Trata-se de um pensamento cuja profunda verdade talvez tenhamos hoje melhor aptidão para apreender. Se em determinada época, nos inícios do materialismo científico, afirmava-se: "O homem é aquilo que come", hoje, numa civilização totalmente dominada pela ima­gem e pela comunicação visual, deve-se dizer: "O homem é aquilo que vê". A imagem tem o poder de penetrar não só no corpo, mas na própria alma por meio da fantasia. O olho é "a lâmpada da alma" (cf. Mt 6,22); e é também a porta da alma.
Contemplando Cristo, diz portanto o Apóstolo, nós nos tornamos semelhantes a ele, conformamo-nos a ele, consentimos que seu mun­do, seus propósitos e seus sentimentos se imprimam em nós, que substituam nossos pensamentos, propósitos e sentimentos, que nos façam semelhantes a ele. Ocorre na contemplação o mesmo que na fotografia, e é curioso descobrir que o próprio termo "fotografar" aparece pela primeira vez em um autor bizantino do século XII, precisamente para indicar o que acontece quando a alma contempla o Cristo. "Preservemos" - afirma ele - "com toda a atenção o espelho da alma, no qual usualmente imprime-se e fotografa-se (photeinographein) Jesus Cristo, sabedoria e potência de Deus." Mas não é exactamente o que constatamos por nós mesmos? Certas ima­gens têm o poder de ficar gravadas em nossa mente e nela permane­cer como grafites em muros de cimento.
O Tabor foi o alicerce instituidor e continua a ser o apelo mais forte a essa contemplação de Cristo que transforma. Ele é, por exce­lência, o mistério da contemplação de Jesus. No "monte santo", como o chama São Pedro, os apóstolos foram epóptai, ou seja, contempladores, espectadores, testemunhas oculares da grandeza de Jesus (cf. 2Pd 1,16-18). Em outros mistérios, prevalece a actualização sacramen­tal ou litúrgica; na Transfiguração, prevalece a direcção intencional que é a contemplação. Com efeito, não existe um sacramento para celebrar a Transfiguração, como há para o baptismo de Cristo e pa­ra a sua morte e Ressurreição.
Todavia, não pretendemos contentar-nos em fazer uma simples reflexão sobre o tema da contemplação de Cristo, mas também, tan­to quanto possível por meio das páginas de um livro, uma experiên­cia de contemplação. Nesse caso, queremos igualmente chegar ao "âmago do assunto", sem nos limitar à ideia do facto. Assim, as meditações que reunimos neste livro foram concebidas como outras tantas subidas matutinas ao monte Tabor, com o propósito de pas­sar meia hora "de olhos fitos naquele que é o iniciador da fé e a conduz à realização" (Hb 12,1), retornando depois, revigorados, ao trabalho quotidiano.
O propósito da contemplação consiste precisa­mente em ir além da letra e reviver dentro de si os sentimentos e os estados de espírito: de Jesus, dos apóstolos, do próprio Pai celeste quando proclama: "Este é o meu Filho bem-amado". Os pintores do ícone, representando Moisés e Elias curvados quase como um arco diante de Jesus, convidam-nos a nos identificar com eles, fazendo nossa a sua atitude de adoração ilimitada.

Todo ícone deve reflectir em si a mesma luz que brilhou no Tabor. Todo ícone de Cristo deve levar a entrever o invisível através da imagem do visível, exactamente como a divindade de Cristo transpareceu no Tabor por entre o véu de sua carne.
[1] Cf. Raniero Cantalamessa, “O Mistério da Transfiguração”, Edições Loyola, São Paulo, 2001, pgs. 12-17

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